Conheça as semelhanças e diferenças entre a festa do boi e o carnaval do Rio

Festival de Parintins x Sapucaí

Com raízes populares, manifestações começaram marginalizadas mas, hoje, acontecem numa arena e na avenida, sendo que, no Norte, a animação da torcida que assiste conta ponto.

No Rio de Janeiro, o Sambódromo. Em Parintins, no Amazonas, o Bumbódromo. O primeiro, uma avenida; o segundo, uma arena. Ambos, porém, solos sagrados de festas populares — o carnaval no Sudeste, o festival folclórico, no Norte —, que exaltam as raízes do Brasil e são consideradas algumas das maiores expressões culturais do país. Separado do Rio por 2.685km, o Festival de Parintins, cujo interesse despertado em outras regiões ganhou uma ajuda extra com a presença de Isabelle, integrante do Boi Garantido, no “Big Brother Brasil 24”, tem mais semelhanças com a folia carioca (largamente transmitida na TV) do que se imagina. Para começo de conversa, é na história que as duas se encontram.

Semelhanças históricas entre carnaval do Rio e Festival Folclórico de Parintins
— As raízes das duas brincadeiras são parecidas — diz Ericky Nakanome, presidente do Conselho de Arte do Boi Caprichoso e professor de Artes Visuais da Universidade Federal do Amazonas. — O carnaval nasce da comunidade negra, de massas populares. E a festa de Parintins se ergue pelas comunidades cabocla e cabana, dos beiradões dos rios da Amazônia.

Rio e Amazonas também convergem no que Ericky chama de “negação das elites”. No início do século XX, as classes mais abastadas dos dois estados desprezaram as festas, que aconteciam na rua, de forma mais amadora:

— Só com o processo de espetacularização é que as elites se apropriam das duas, antes mostradas apenas nos noticiários de polícia, como festa de bagunça, de bêbado.

Samba-enredo x Toada


Mais de um século depois de seus primeiros foliões — e de 40 anos de Sambódromo e 36 de Bumbódromo tal qual é hoje, ambos totalmente organizados para ser um espetáculo profissional —, as diferenças, digamos, práticas são marcantes. Se no Rio ecoa na Avenida, por 65 minutos, o “samba-enredo” de cada uma das escolas (são, ao todo, 12 no Grupo Especial e 16 na Série Ouro), em Parintins, em cada um dos três dias de festa, o que se canta e dança é a “toada” do Caprichoso ou do Garantido, os dois bois-bumbás da festa. Está aí, talvez, a diferença primordial entre as duas manifestações. Em Parintins, ou se torce para o Garantido, da cor vermelha; ou para o Caprichoso, da cor azul. E a “polarização”, para usar o termo da moda, é grande.

— A gente sempre fala “o boi contrário” e nunca o nome do outro boi — diz Helen Veras, diretor administrativo e membro da Comissão de Artes do Boi Garantido, explicando também que o equivalente à “bateria” tem nomes diferentes, um para cada boi. — A do Garantido é a Batucada; a do outro é Marujada.

Isabelle é trégua entre Caprichoso e Garantido durante BBB
A rivalidade é grande mesmo, mas durante o BBB 24 está havendo uma trégua. Isso porque Isabelle é a cunhã-poranga (a figura feminina que representa a beleza anticolonial) do Garantido. Mas o Caprichoso também vai torcer por ela em qualquer paredão que vier pela frente.

— Entendemos o paredão como trégua para apoiar uma amazonense que faz propaganda da nossa festa nacionalmente — explica Ericky. — Mas, após o BBB, a gente cancela essa trégua. Estamos torcendo para que Isabelle ganhe o programa, mas, no Bumbódromo, queremos que ela perca para Marciele Munduruku.

O que é cunhã-poranga?
Marciele é a cunhã-poranga do Caprichoso, e Ericky e Helen explicam que não é correto dizer que este cargo corresponde ao de “rainha de bateria”. Isso porque existem outras três figuras femininas individuais importantes que passam pelo Bumbódromo. São elas a sinhazinha da fazenda, a porta-estandarte (que vem sozinha e não usa vestido, ou seja, nada parecida com uma porta-bandeira de escola de samba) e a rainha do folclore. Todas essas mulheres são avaliadas pela comissão julgadora, que observa 21 itens. No Rio, há quatro jurados para cada um dos nove quesitos.

— Aqui em Parintins forma-se um grupo com nove jurados, sem contar os reservas. Eles vêm de outras cidades e são doutores e mestres em História e Antropologia, que mudam todo ano — explica Helen.

Em Parintins, torcida conta ponto
A turma que decide o desfecho da festa do Boi avalia até a animação das torcidas, chamadas “galeras”. Portanto, durante as duas horas e meia de apresentação de cada boi (última sexta, sábado e domingo de junho, datas fixas da festa) é preciso estar atento e forte. Com toada decorada (atenção porque a cada dia podem ser tocadas entre 30 a 50 toadas, entre inéditas daquele ano e outras tradicionais) e coreografia de braço também.

—As torcidas de escolas de samba são livres, as nossas aqui concorrem — diz Ericky. — O brincante é ensaiado, a disputa é acirradíssima. Por exemplo: se há uma cena de guerra entre dois povos indígenas, metade da galera movimenta os braços com uma lança e a outra, com um escudo. Elas podem interagir segurando pompons, flores, leques. É coreografia de braço e de canto.

E ai de quem se atrever a bancar o engraçadinho e atrapalhar o momento da torcida contrária. Os jurados veem tudo e tiram ponto, e o “espertalhão” pode se dar mal, diz Ericky.

— Caso se manifeste fora de hora, é capaz de a pessoa apanhar da própria galera (risos). É tenso.

As diferenças de enredos no Rio e em Parintins
Além do comportamento da torcida, outro aspecto coisa mais flexível no carnaval carioca são as escolhas do enredo. Neste ano de 2024, por exemplo, há temas que vão desde o romance “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves (Portela) a homenagem à cantora Alcione (Mangueira), passando por uma ode ao… caju (Mocidade). Vale tudo na Avenida Marquês de Sapucaí, mas em Parintins é proibido sair da cultura da Amazônia e dos povos indígenas. Com isso, diz Ericky, o Boi acaba tendo uma estética apoiada em materiais como cascas de madeira, palha, sementes, fibras.

— Pelo menos, 40% dos nossos materiais não são sintéticos. Usamos muita palha, bambu… — diz o representante do Caprichoso. — Ainda temos bicho papão de isopor, mas queremos superar isso.

O que acontece no Bumbódromo
Datas: o Festival Folclórico de Parintins acontece sempre no último fim de semana (sexta, sábado e domingo) de junho. Os ensaios no “curral” (a quadra de cada um dos bois) começam geralmente depois da Páscoa.
Cronômetro: o tempo de apresentação deve ser de, no mínimo, duas horas e, no máximo, duas horas e meia. “Erro de tempo é considerado amador”, diz Ericky Nakanome.
Enredos: Caprichoso e Garantido precisam, necessariamente, contar histórias (os chamados “temas”) relacionadas à Amazônia e aos povos indígenas.
A música: o samba-enredo em Parintins é chamado de toada (“Vermelho”, famosa na voz de Fafá de Belém, por exemplo, foi uma toada composta para o Garantido); o “levantador de toadas” é o “puxador”. Por noite, ele pode cantar até 50 toadas, entre inéditas e antigas. Tanto as toadas quanto o levantador são itens avaliados pelos jurados.

O que conta: são nove os jurados que observam 21 itens apresentados por cada Boi no Bumbódromo, entre individuais e coletivos. No primeiro, por exemplo, são analisados o apresentador (que tem o papel de conduzir a apresentação da história daquele ano, um elemento sem igual no carnaval carioca); e também as figuras como sinhazinha da fazenda, cunhã-poranga, porta-estandarte, rainha do folclore, pajé etc. Entre os itens coletivos, destaque para as alegorias. Elas são espécies de carros alegóricos turbinados, compostos por vários módulos que se juntam. Cada Boi tem a obrigação de apresentar alegorias que representem ao menos uma lenda amazônica, uma figura típica regional, um ritual indígena. Não há número máximo estabelecido.
Brincantes: Caprichoso e Garantido podem levar para a arena quantos brincantes quiserem. Alguns itens, no entanto, têm limites, como, por exemplo, a vaqueirada (uma espécie de ala que tem componentes com cavalos e lanças), que precisa ter 40 pessoas.
Bateria: a Marujada (bateria do Caprichoso) e a Batucada (bateria do Garantido) chegam a ter 300 componentes, com uma grande variação de instrumentos, incluindo sopro e metais. “É uma ópera a céu aberto”, diz Helen Veras, membro da Comissão de Arte do Garantido.
Quem tem mais títulos? E quem sai na frente é… O Boi Garantido, com 32 títulos, contra 25 do concorrente. Mas, ano passado, quem venceu a disputa foi o Caprichoso, que conseguiu o bicampeonato.

Fonte: oglobo.globo.com

Fotos: Divulgação

Por: Talita Duvanel