Como foi a pesquisa nacional que descobriu remédio “eficaz” contra covid-19

A descoberta do fármaco nitazoxanida, divulgado como “eficaz” contra o coronavírus pelo MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações) em anúncio desta segunda-feira (19), sem divulgação de dados do estudo, envolveu um grande centro de pesquisa nacional e uma busca do tipo “agulha no palheiro” para encontrar um tratamento para a doença.

Ainda não está claro o quão eficaz é o tratamento com o vermífugo —a médica Patricia Rocco, chefe do Laboratório de Investigação Pulmonar do IBCCF (Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho) da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), participou da entrevista após comandar os testes da droga e falou em “diminuição da carga viral”.

A nitazoxanida, em comparação com o grupo que tomou placebo, gerou redução significativa da carga viral, com maior número de pacientes com resultado negativo para o Sars-Cov-2. A redução da carga viral por si só já gera menor transmissibilidade do vírus. Não posso dar mais detalhes, pois o estudo foi submetido a uma revista internacional”, apontou.

Rocco explicou que a divulgação prévia da eficácia, sem abertura de dados, ocorreu por causa da emergência causada pela pandemia. Não está claro, por exemplo, se o remédio é de fato “eficaz” apenas nos estágios iniciais e casos leves da doença ou também para casos mais graves com internações. Também não foram divulgados, até o momento, porcentagens ou dados da suposta eficácia do medicamento.

A busca por um remédio contra a doença é a principal solução a curto prazo para a pandemia, antes da chegada da vacina. Nenhum tratamento ainda se mostrou totalmente eficaz.

Segundo o ministro Marcos Pontes, o medicamento não deve ser tomado como forma de prevenção, mas apenas após comprovada a presença do vírus no organismo. O próprio ministro diz ter sido um dos voluntários no teste, já que se contaminou com o coronavírus. Os estudos com a droga seguirão, mas agora no Ministério da Saúde.

A busca pelo remédio

Tudo começou ainda em janeiro, muito antes do primeiro caso oficial de coronavírus no Brasil. Na época, pesquisadores do Cnpem (Centro Nacional de Pesquisas em Energias e Materiais), em Campinas (SP), começaram a ir atrás de remédios já existentes no mercado e que poderiam atuar contra a covid —a técnica é chamada de “reposicionamento de fármacos”.

Menos de dois meses depois do início dos testes, que envolveram mais de 2.000 candidatos a tratamentos, restaram cinco opções, consideradas as mais promissoras.

O Cnpem, onde a pesquisa inicial foi feita e o fármaco selecionado, é um centro independente de pesquisas, mas supervisionado pelo MCTI. Ele conta com laboratórios nacionais de nanotecnologia, biociências, biorrenováveis e de luz síncrotron, sendo este último o responsável pelo Sirius, um dos mais avançados aceleradores de partículas do mundo.

Uso de computador para entender interações

Dos 2.000 medicamentos iniciais —eram analgésicos, anti-hipertensivos, antibióticos e diuréticos, entre outros— o número caiu para 16 após análises em computador. Depois caiu para cinco medicamentos mais promissores, baratos e disponíveis no mercado brasileiro.

A intenção era ver se algum dos milhares de fármacos selecionados poderia interagir com a protease [um tipo de enzima] do coronavírus para evitar sua replicação no corpo humano.

Nesta fase da pesquisa, foram feitas análises e simulações computacionais com inteligência artificial para entender quais medicamentos poderiam inibir a enzima e funcionar como um antiviral.

“Esse encaixe não ocorre de maneira fácil. É como buscar uma chave [medicamento] em um chaveiro cheio delas [muitos compostos]. Essa chave deve se encaixar perfeitamente na fechadura do vírus [locais específicos das proteínas dos vírus capazes de bloquear sua atividade]”, disse à época ao Tilt Daniela Trivella, coordenadora científica do LNBio (Laboratório Nacional de Biociências) do Cnpem.

“Estas regiões específicas das proteínas virais são importantes para realizar reações químicas, infectar células humanas e propagar o material genético viral —fases fundamentais de uma infecção. Por isso, são estas fechaduras que miramos”, aponta Trivella.

Testes em células

Após a análise computacional, a pesquisa passou para testes in vitro do medicamento. Nessa fase, as drogas selecionadas eram testadas em células infectadas com o coronavírus. A intenção era checar se a evidência identificada pelos computadores se transformava em realidade nos laboratórios.

A nitazoxanida foi identificada como o mais promissor dos medicamentos selecionados pelo Cnpem. Nos testes em laboratório, ele apresentou 94% de eficácia após 48 horas em testes in vitro contra o coronavírus —número similar ao da cloroquina, que posteriormente não teve a eficácia comprovada em testes em humanos.

O anúncio com pompa do ministério levou a críticas de especialistas à época, que afirmaram que o teste in vitro não tinha muito significado. Faltavam os testes clínicos, que passaram a ser elaborados entre o final de abril e o início de maio.

Ensaios clínicos

Segundo Patrícia Rocco, os testes envolveram diversas cidades brasileiras como São Caetano do Sul (SP), Barueri (SP), Juiz de Fora (MG), Sorocaba (SP), Bauru (SP), Guarulhos (SP) e Distrito Federal.

O estudo clínico foi aprovado por instâncias como o Conep (Conselho Nacional de Ética em Pesquisa) e seguiu ao longo de quatro meses. Ao todo, 1.575 voluntários admitidos com até três dias de sintomas da covid participaram dos testes – um grupo tomou o remédio e outro, de controle, ingeriu placebo.

No grupo que ingeriu a nitazoxanida, foram receitados 500 miligramas da droga três vezes ao dia. Os resultados divulgados apontam para uma eficácia do medicamento ao reduzir a carga viral, mas sem detalhes do tamanho dessa eficácia e nem dados que comprovem o potencial tratamento.

Foto – Divulgação